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Viver no Passado ou Estudá-lo?
O isolamento é um pecado que está sempre a nos rondar. O calvinista verdadeiro não é aquele que vive no passado mas o que procura aplicar as doutrinas bíblicas reveladas à sua situação, ao seu contexto. O seu apreço pela história e pelos reformadores não procede de um interesse meramente “arqueológico”.
A Abordagem do Antiquário
Martin Lloyd-Jones nos alerta para um perigo que existe dentro do interesse pelos acontecimentos que marcaram a Reforma e nossa herança puritana. Na realidade, ele nos confronta com uma forma errada e uma forma certa de relembrar o passado, do ponto de vista religioso. (12)
A forma errada, seria estudar o passado por motivos meramente históricos. Esse estudo seria semelhante à abordagem que um antiquário dedica a um objeto. Por exemplo, quando ele examina uma cadeira, ele não está interessado se ela é confortável, se dá para se sentar bem nela, se ela cumpre adequadamente a função de cadeira. Basicamente a preocupação se resume à sua idade, ao seu estado de conservação e, principalmente, a quem pertenceu. Isto determinará o valor daquele objeto para ele e, conseqüentemente, o seu estudo é motivado por esta visão. O estudo errado da história ocorre, muitas vezes, em função dessa abordagem do antiquário.
O Alerta de Jesus, Registrado por Mateus
Em Mateus 23.29-35 teríamos um exemplo desse apreço errado pelo passado. O trecho diz:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque edificais os sepulcros dos profetas e adornais os monumentos dos justos, e dizeis: Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não teríamos sido cúmplices no derramar o sangue dos profetas. Assim, vós testemunhais contra vós mesmos que sois filhos daqueles que mataram os profetas. Enchei vós, pois, a medida de vossos pais.
Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno? Portanto, eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas: e a uns deles matareis e crucificareis; e a outros os perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós caia todo o sangue justo, que foi derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo, até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que mataste entre o santuário e o altar.
Jesus diz que aquelas pessoas pagavam tributo à memória dos profetas e líderes religiosos do passado. Eles prezavam tanto a história, que cuidavam e enfeitavam os sepulcros. Proclamavam a todos que os profetas eram homens bons e nobres e atacavam quem havia rejeitado os profetas. Diziam eles: “se estivéssemos lá, se vivêssemos naquela época, não teríamos feito isso!” Mas Jesus não se impressiona e os chama de hipócritas! A argumentação de Jesus é a seguinte: Se vocês se dizem admiradores dos profetas, como é que estão contra aqueles que representam os profetas e proclamam a mesma mensagem que eles proclamaram? Ele testa a sinceridade deles pondo a descoberto a atitude no presente para com aqueles que hoje pregam a mensagem de Deus e mostra que eles próprios seriam perseguidores e assassinos dos proclamadores da mensagem dos profetas.
O Nosso Teste
Esse é também o nosso teste: uma coisa é olhar para trás e louvar homens famosos, mas isso pode ser pura hipocrisia se não aceitamos, no presente, aqueles que pregam a mensagem de Lutero e de Calvino. Somos mesmo admiradores da Reforma, daqueles grandes profetas de Deus? Se não aplicamos na vida prática as doutrinas reformadas o nosso interesse é apenas o de antiquários. Estamos promovendo e encorajando o pecado do isolamento, com esse tipo de visão da história?
A forma correta de relembrar o passado
Mas existe uma forma correta de relembrar o passado. Deduzimos esta não apenas por exclusão e inferência do texto anterior mas por que temos um trecho na Palavra de Deus—Hebreus 13.7-8, que diz: “Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos pregaram a palavra de Deus, e, considerando atentamente o fim da sua vida, imitai a fé que tiveram. Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente.”
As doutrinas são de Cristo. Ele e os seus ensinamentos, são os mesmos ontem, hoje, e eternamente. A maneira correta de relembrar a Reforma é, portanto, verificando a mensagem, a palavra de Deus, como foi falada, e isso não apenas por um interesse histórico de “antiquário” mas para que possamos imitar aquela fé demonstrada. Devemos observar aqueles eventos e aqueles homens, para que possamos aprender deles. Vamos verificar como eles aplicaram as doutrinas eternas aos seus dias e vamos seguir os seus exemplos discernindo a essência da sua mensagem e aplicando-a aos nossos dias.
Deus é Sempre Contemporâneo em Seu Falar
Não podemos, portanto, viver num mundo isolado, demonstrando falta de aproximação com a nossa igreja, com os nossos irmãos, com o nosso povo, com a nossa realidade.
Hebreus 1.1-4 mostra que Deus fala de forma diferente a tempos diferentes. O cerne da mensagem não muda. Nos nossos dias, a revelação escriturada está completa e não estamos defendendo a existência de novas revelações. Entretanto, reconhecemos que Deus sempre demonstrou querer falar com o homem nos seus termos. Na Palavra de Deus temos os muitos antropomorfismos – descrições figurativas da pessoa de Deus, em características de homem. Isso é um exemplo de como Deus condescende em chegar até o homem.
Paulo enfatiza a necessidade da comunicação eficaz, indicando que fez-se fraco, para os fracos; judeu, para os judeus; e gentio, para os gentios (1 Co 9). A linguagem das escrituras era o grego comum, falado pelo povo que diferia tanto do grego clássico, da literatura, que durante muitos anos estudiosos bíblicos postulavam que era um tipo de “grego sagrado”. Se Deus chega-se até ao homem, nas suas limitações e circunstâncias, objetivando a melhor comunicação, porque pensamos que devemos fazer os crentes chegar até estilos e formas que não são mais nossas? Porque prejudicamos a eficácia da nossa comunicação? Porque cristianizamos estilos e formas que não fluem da Bíblia, mas pertenceram a uma época? Porque nos tornamos antiquários em vez de usuários e aplicadores práticos das verdades de Deus? Lembremo-nos que Deus tem a palavra certa, na certeza de sua palavra, para a ocasião certa, na hora certa. Supliquemos a Ele que nos livre do pecado do isolamento.
Minha oração é que nós, calvinistas, possamos ser conhecidos tanto por nossa doutrina firme, sadia, segura, intransigente, quanto por nosso amor fraternal, por nossa gentileza, por nossa dedicação no estudo e por nossa aplicação veraz e eficaz das sãs doutrinas, ao nosso tempo. Que não apliquemos esses alertas aos nossos conhecidos ou vizinhos, mas que possamos realmente, com sinceridade, buscar a presença de Deus e verificar se não estamos sendo alvo das ciladas de Satanás, caindo nesses cinco, ou mais pecados.
(12) D. M. Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma (S. Paulo: PES, 1994) pp. 2-5.
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