O Sangue - Benny Hinn, Betânia, 1994 - 133 pags.
Conhecido em todo o mundo como evangelista e líder do movimento carismático, e em anos mais recentes como um dos propagadores do chamado "Evangelho da Prosperidade", o autor Benny Hinn nos traz agora um livro entitulado "O Sangue", no qual apresenta experiências pessoais e trata de aspectos relacionados com o tema do "sangue de Cristo". Este livro chega às livrarias após vários outros nos quais Benny Hinn discorre sobre sua conversão e experiências pós-conversão, dentro de um ministério controvertido e fluido, marcado por traços de sinceridade, de um lado, e por outro, de uma grande falta de base doutrinária, exegética e teológica.
Para entendermos melhor o autor, é necessário saber que a falta de embasamento exegético para as proposições que faz com tanta autoridade tem provocado mudanças em suas convicções, algumas vezes até para melhor. Por exemplo, um periódico norte-americano relatou que Hinn havia renunciado à suas antigas pregações e defesas da teologia da prosperidade e do direito divino de ser curado. Diz o artigo que Benny Hinn, perante uma congregação chocada, disse (Artigo em Christianity Today, 16 de agosto de 1993, pp. 38-39):
...é só fé, fé, fé e nada de Jesus. Precisamos ter fé em Jesus, o autor e consumador da fé... Paremos de buscar a fé e comecemos a buscar ao Senhor! A mensagem da fé é da Nova Era e não funciona. Vou parar de pregar a cura e começar a pregar Jesus!
Muitos dos que acompanham o autor e suas obras, entretanto, mostram-se cépticos quanto à existência de profundas transformações em seu pensamento e sua mensagem. Com efeito, o seu livro O Sangue segue a linha dos anteriores, onde Hinn apresenta um conglomerado de verdades bíblicas, às quais são adicionadas inferências não substanciadas, juntamente com interpretações equivocadas de trechos da Palavra de Deus, sobre um pano de fundo de várias experiências.
O livro procura demonstrar aos crentes o poder do sangue de Cristo. O tema é desenvolvido a partir de experiências pessoais, e de outras, de que o autor tomou conhecimento, e nas quais este poder do sangue foi demonstrado. Seguem-se vários capítulos onde tais experiências são intercaladas com exposições de trechos bíblicos que fazem referência ao tema "sangue". Em sua abordagem, o autor agrupa indiscriminadamente inúmeras referências bíblicas à palavra sangue, traçando conexões com o derramar do sangue de Cristo na cruz, e o seu significado redentivo para o seu povo. Algumas dessas conexões são biblicamente justificadas, outras não.
Muitos capítulos tratam de temas relevantes à vida cristã, como por exemplo, do trabalho mediatório de Cristo, da justificação encontrada nele, da graça insondável de Deus, e do selo do Espírito Santo na salvação do crente. O livro, O Sangue, não segue, entretanto, uma progressão lógica e não tenta, pelo menos, apresentar uma exposição bíblica popular do seu tema-título.
O autor termina apresentando a presença do sangue de Cristo na Ceia do Senhor, baseado em uma experiência vivida com um grupo de "freiras Carismáticas", com as quais celebrou a Santa Ceia, experimentou pessoalmente o poder do sangue, recebendo "a unção de Deus através do sangue de Jesus" (p.125-133). Ele diz: "...eu não sabia que Deus me reservava, naquela noite, uma experiência extraordinária..." (p. 126). "...comecei a experimentar uma espécie de dormência nos braços e no peito." (p. 126). "...senti que as pontas dos meus dedos tocavam um manto... havia um corpo físico ali... ...encontrava-me literalmente ajoelhado aos pés de Jesus" (p. 127).
Conclama, por fim, os seus leitores a desenvolverem suas próprias experiências místicas de comunhão com Cristo, na Ceia do Senhor e no poder do sangue de Cristo, traçando uma conexão segura entre o apelo ao poder do sangue e as bênçãos carismáticas que decorrem desse recurso. "Todas as vezes que me dirijo a uma reunião, agradeço ao Senhor pelo sangue. E tão logo o faço, sinto a presença de Deus descer sobre nós e os milagres ocorrem" (p. 133).
É inegável a importância dada na Palavra de Deus ao sangue. Teologicamente, existe uma controvérsia se ele seria símbolo de vida, ou de morte (pelo seu derramar, ou pela sua ausência). Leon Morris indica que, estatisticamente, as referências bíblicas ao sangue apontam para a realidade da morte, principalmente para a conexão desta com a punição de pecado Leon Morris, "Blood," em Baker's Dictionary of Theology (Grand Rapids: Baker Book House,1969) 99-100). Sem precisar entrar no âmago dessa controvérsia, sabemos que as referências do tema sobre a pessoa de Cristo versam sobre a sua morte na cruz, ou sobre a dádiva de sua vida, pela sua Igreja, com todos os conseqüentes benefícios aplicados aos salvos. O seu sangue, derramado pelos escolhidos, é porta única pela qual passa toda esperança de redenção e proteção.
Entretanto, a abordagem sem uniformidade do tema, e a falta dos embasamentos aos quais já nos referimos, fazem com que o autor apresente no livro vários pontos questionáveis, quando analisados do ponto de vista de uma teologia construída sobre sólida base exegética, como é a nossa fé reformada. Tratamos de alguns desses questionamentos, nessa resenha.
O sangue é um talismã?
Em várias ocasiões, Hinn procura afirmar que não está apresentando o sangue de Jesus Cristo como algo "que tem um poder mágico", ou como "um talismã" (p. 20). O tratamento que dá à questão, entretanto, resulta exatamente no que afirma não fazer. No conceito de Hinn, o sangue de Cristo não é apenas um termo gráfico, descritivo e simbólico da sua vida, que foi dada por sua igreja, mas é algo que se usa. Como ele questiona na página 21: "Como podemos usar o sangue de Jesus para derrotar o inimigo em nossa experiência diária?" Ele relata a experiência de um pastor que, na Segunda Guerra Mundial, foi protegido juntamente com sua família de inúmeros ataques aéreos. Dizia este pastor: "Irmãos, não sei de nenhuma ocasião em que alguém tivesse clamado ativamente pelo sangue de Jesus em voz audível, e que ele tivesse falhado" (p. 19). Note a semelhança desta afirmação com fórmulas mágicas e regras supersticiosas, pois até a prescrição de que a invocação do sangue tem que ser em voz audível, está presente, contrariando textos tais como Rm 8.26-27.
O autor indica, em sua experiência pessoal, que só se livrou da "opressão demoníaca" em sua vida depois que começou a pedir a Deus que o cobrisse com o sangue de Jesus. Ele descreve uma experiência pessoal que, na realidade, poderíamos chamar de apnéia espiritual. Hinn diz ter atravessado uma situação em que "...quando orava, experimentava pesada opressão. Tinha pesadelos e em certos momentos parecia que algo me asfixiava". Ele afirma que já era salvo e pastor, mas mesmo assim sofria tais "opressões" (pp. 19 e 20). Após "descobrir esta verdade", nunca mais sofreu outro ataque deste tipo. A verdade seria "o pedir a Deus que me cobrisse com o sangue de Jesus" (p. 20).
Fica claro, então, que no conceito de Hinn, a aplicação do sangue de Cristo não é apenas o processo de regeneração efetivado pelo Espírito Santo na vida do crente, com a conseqüente imputação dos nossos pecados a Cristo e de sua justiça a nós, mas trata-se de algo mais. Representa uma segunda ou terceira experiência a ser buscada pelos crentes, uma espécie de "conhecimento escondido" ou um "mistério" a ser discernido por uma casta inquisitiva e mística de fiéis.
Nunca é demais lembrar que a idéia de que existem verdades "escondidas" a serem descobertas, as quais fogem ao senso pleno e comum de uma interpretação contextual (gramático-exegética-histórica) das Escrituras, foi a raiz das heresias gnósticas do segundo século da era cristã. Formas de proto-gnosticismo foram combatidas veementemente por Paulo, na epístola aos Colossenses, e por João, em sua primeira epístola. Tal pensamento constitui também a característica inicial de muitos cultos e seitas, tanto os históricos extintos, como os contemporâneos.
Conexão direta com Deus?
Em várias ocasiões, no livro, Hinn coloca-se em posição de diálogo com Deus. Nestes diálogos, ele recebe mensagens e palavras específicas: "...ouvi Deus dizer-me algo... Ele falou: 'tire o anel do dedo dela'.... E o Senhor repetiu a frase, ainda com mais ênfase..." (p. 43). "Certo dia o Senhor me disse: 'Use sua autoridade como Cristão.' ...então passei a repreender Satanás." Na p. 95 o autor mantém um longo diálogo com Deus, no qual é instruído sobre a certeza da salvação. Semelhantemente, nas pp. 101 e 102 o autor relata outro diálogo seu com Deus e mais um outro extenso diálogo, mantido por um pastor russo. Não se refere, o autor, à comunhão normal, mantida pelo crente com Deus, em oração e na meditação da Palavra nem à iluminação que o Espírito Santo concede aos crentes, para o entendimento das Escrituras.
Tal "conexão direta com Deus", característica incomum à maioria dos redimidos, pareceria colocar o autor acima de qualquer questionamento, pois afinal é alvo de revelação direta, enquanto que os meros leitores e os pobres resenhistas teriam que se contentar "apenas" com os registros da Palavra de Deus. Somos testemunhas, entretanto, de que tal inclinação teológica leva a um desprezo progressivo pelas Escrituras Sagradas, que são transformadas em fonte secundária de conhecimento, tornando os proponentes presa fácil de muitos desvios das verdades de Deus.
O poder do sangue é igual à visitação do Espírito?
O autor refere-se a um incidente na Escócia, onde a visitação "espontânea" do Espírito ocorreu "assim que aqueles irmãos reconheceram o poder do sangue de Jesus" (p. 18). Logo após, receberam eles a "experiência Pentecostal", e o avivamento se alastrou por toda a Inglaterra. Uma visitação "espontânea" ligada a uma ação humana é no mínimo uma contradição em termos. Além de limitar o Espírito, contradiz trechos tais como João 3.8.
Pactos de sangue?
Alguns pactos de sangue, entre homens, configurados por juramentos de amizade e lealdade, e selados por cortes nos braços dos pactuantes, são relatados pelo autor, no sentido de mostrar a importância mística do sangue (pp. 24, 32-33). Hinn erra, entretanto, em procurar traçar um paralelo entre esses "pactos" e a "aliança de sangue feita com Deus" (p. 24). Arbitrariamente, ele trata da questão dos holocaustos ocorridos no período do Velho Testamento, e da circuncisão, como "alianças seladas com sangue" (p. 32).
Conclusão
Quando o autor foge um pouco do seu tratamento atabalhoado do tema que escolheu, chega até a desenvolver algumas lições proveitosas. No árido deserto da carência doutrinária, encontramos aqui e ali alguns oásis de admoestações práticas.
Por exemplo: na p. 27 ele tem um bom tratamento da tentação de Jesus no deserto; nas pp. 75-85 ele tem dois bons capítulos (10 e 11), mostrando como a redenção dos salvos sepulta o passado, quanto à aceitação por Deus, e instruindo quanto ao custo dessa redenção.
No cômputo geral, porém, as inferências não bíblicas do autor - por exemplo: ele equaciona a unção do Espírito Santo com um misterioso "brilho nos olhos" (p. 122) -, as constantes "descobertas" de pontos obscuros - por exemplo: ele "descobre" um novo aspecto na ceia do Senhor-a comunhão física com Jesus (p. 127-128) -, as suas contradições teológicas - por exemplo: um Arminianismo gritante é propagado na p. 117, mas na p. 118 ele faz uma magistral apresentação e defesa da segurança eterna, enquanto prefaceia tal exposição com uma afirmação de "nossa inteira liberdade de decisão." - e as equivocadas interpretações bíblicas - "Cristo conquistou a posição de sumo sacerdote ao derramar seu sangue" (p. 88). "Ele só se torna o nosso advogado depois que o sangue é aplicado ao nosso coração" (p. 89) -, que tingem a maior parte do trabalho, tornam o livro confuso e não recomendável como base de instrução bíblica, principalmente aos iniciantes na fé.
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